data-filename="retriever" style="width: 100%;">Com razoável frequência, sou assaltado por umas ideias homicidas. Explico: desejo matar o poeta que, às vezes, penso que sou e, lato sensu, o projeto de escritor que habita em mim e que me sufoca, com manifestas ânsias de se apoderar da minha personalidade. São compreensíveis, pois, as razões que me animam o pensamento nessas ocasiões. E, portanto, se viesse a cometer o homicídio (vaticídio?), no mínimo, poderia alegar excludentes penais, tais como estado de necessidade e legítima defesa putativa.
Três ou quatro senhoras minhas conhecidas dirão, sei, que isto é uma insensatez, pois, quase sempre, nas minhas crônicas, me desfaço em enlevos e ternas frases, que afagam os seus espíritos sonhadores e que seria um despropósito privá-las desse pequeno prazer, quase sensual e mundano, eis que tão poucos, dessa ordem, lhes restam para acalentar-lhes a maturidade vazia de amores e de prazeres.
Logicamente, quando imagino a reação das ilustres damas, o projeto de escritor se assanha, e numa verborragia incontrolada, esgrime, com revoltante desfaçatez, o falacioso argumento de que posso, sim - essa é a prova provada -, dedicar-me à arte da palavra escrita. É o que basta para me fragilizar, para confundir-me e quase me fazer sucumbir à tentação de dizer-me poeta, cronista, escritor. Nesses momentos, se não me controlo, sou bem capaz de cometer poemas vazios, crônicas que não passam de retórica e sediciosa tentativa de corromper corações aflitos e vulneráveis, textos estes, todos, de escassa ou nenhuma literariedade.
Em tais circunstâncias, o remédio que se tem revelado mais eficaz é a leitura de verdadeiros escritores (Machado, Eça, Goethe, Sommerset Maughan, Dostoiewski, Érico, Josué Guimarães, Castro Alves, Cesário Verde, Pessoa, Drummond, Bandeira, apenas para citar uma dúzia de verdadeiros artífices do verbo transformado em arte, todos elevados, literalmente, à condição de estrelas). Poderia referir dezenas de outros autores, entre vivos e falecidos, entre prosadores e poetas, inclusive locais, que dominam a arte de escrever e nos põem encantados com sua verve, com suas fabulações e seus versos exatos, escorreitos, livres de todo excesso que os possa comprometer.
A leitura de um único parágrafo ou de um verso isolado de uma desses Gênios da Raça é suficiente para pôr-me envergonhado ante a ilusória e eventual pretensão de ombrear-lhes a condição de literatos. E, inevitavelmente, questiono o Todo-Poderoso, perguntando-lhe se é justa a sina que me outorgou.
Depois, maldigo a tibieza que me impede de consumar a definitiva morte dessa criatura insensata que habita as entranhas do meu espírito e que se evade a todas as tentativas de lhe pôr um ponto final na sofredora existência, de modo que, finalmente, me possa libertar do seu jugo cruel e devastador.
E, assim, fraco e incapaz de uma ação efetiva, tendente a pôr cobro aos meus martírios, sigo me consumindo em culpas não remidas e ruminando aquelas ideias - até quando serão apenas ideias? - de libertação.
*Este artigo foi originalmente publicado na página 21 da edição de 2 de março de 2021